quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Para não esquecer: decisão superior já consagrou que pessoa jurídica comete crime ambiental



Por Rosângela Tremel


Em tempos de Código Ambiental Catarinense eivado de inconstitucionalidades , vale lembrar que Santa Catarina foi pioneira em sentença condenatória para crime contra o meio ambiente praticado por pessoa jurídica.


Relembre a história que teve origem na denúncia do Ministério Público de Santa Catarina contra posto de gasolina que lançava resíduos de suas atividades em um rio próximo, provocando poluição da água. Em primeira instância, foi rejeitada em relação ao estabelecimento, com base no entendimento de que pessoa jurídica não poderia figurar no pólo passivo da ação penal; em segunda instância, aplicou sanções de natureza civil e administrativa, entendendo não caber aquelas de origem penal; ao chegar ao STF por persistência do Parquet catarinense obteve manifestação histórica, isto é a materialização do disposto no art 225 ,caput, da Constituição Federal e em seu específico art 3º : “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, as sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (grifo nosso).

A expressividade desta decisão se torna maior porque, em 2004, o que se encontrava nos tribunais superiores eram julgados como este Recurso Especial, cujo relator foi o Ministro Felix Fischer: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA.Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Destarte a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal às pessoas jurídicas, frise-se carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal. (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte). Recurso desprovido. [1]

Apesar desta tendência do STJ, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por exemplo, há tempos vinha demonstrando mais sensibilidade à questão, dando realce à premissa de que, no caso da responsabilidade penal, o agente infringe uma norma de direito público, portanto indisponível , sendo que o interesse lesado é o da sociedade, postura evidenciada no voto do Desembargador Federal Fábio Bittencourt da Rosa, no Mandado de Segurança nº 2002.04.01.013843-0/PR: PENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA. PASSAGEM DA CRIMINALIDADE INDIVIDUAL OU CLÁSSICA PARA OS CRIMES EMPRESARIAIS. CRIMINALIDADE DE EMPRESAS E DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS. DIFERENÇAS. SISTEMA NORMATIVO REPOSITIVO E RETRIBUTIVO. IMPUTAÇÃO PENAL ÀS PESSOAS JURÍDICAS. CAPACIDADE DE REALIZAR A AÇÃO COM RELEVÂNCIA PENAL. AUTORIA DA PESSOA JURÍDICA DERIVA DA CAPACIDADE JURÍDICA DE TER CAUSADO UM RESULTADO VOLUNTARIAMENTE E COM DESACATO AO PAPEL SOCIAL IMPOSTO PELO SISTEMA NORMATIVO VIGENTE. POSSIBILIDADE DE A PESSOA JURÍDICA PRATICAR CRIMES DOLOSOS, COM DOLO DIRETO OU EVENTUAL, E CRIMES CULPOSOS. CULPABILIDADE LIMITADA À MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DE QUEM DETÉM O PODER DECISÓRIO. FUNÇÃO DE PREVENÇÃO GERAL E ESPECIAL DA PENA. FALÊNCIA DA EXPERIÊNCIA PRISIONAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE. MELHORES RESULTADOS. APLICABILIDADE ÀS PESSOAS JURÍDICAS. VONTADE DA PESSOA JURÍDICA SE EXTERIORIZA PELA DECISÃO DO ADMINISTRADOR EM SEU NOME E NO SEU PROVEITO. PESSOA JURÍDICA PODE CONSUMAR TODOS OS CRIMES DEFINIDOS NOS ARTIGOS 29 E SEGUINTES DA LEI 9.605/98. PENAS APLICÁVEIS. CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DAS PENAS ALTERNATIVAS E PRESCRIÇÃO. LIMITES MÍNIMO E MÁXIMO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PREVISTOS NOS TIPOS DA LEI 9.605/98. INTERROGATÓRIO NÃO DEVE SER FEITO NA PESSOA DO PREPOSTO. ATO DEVE SER REPETIDO NA PESSOA DO ATUAL DIRIGENTE. PROVA. NECESSIDADE DE REVELAR A EXISTÊNCIA DE UM COMANDO DO CENTRO DE DECISÃO QUE REVELE UMA AÇÃO FINAL DO REPRESENTANTE. INVIABILIDADE DE ANALISAR PROVAS EM SEDE DE MANDADO DE SEGURANÇA. NECESSIDADE DE CONTRADITÓRIO. SEGURANÇA DENEGADA. 3


E, ainda, no referido voto, conclui: “Indubitavelmente, a pena não mais pode ser vista como medida retributiva ou ressocializadora. Sua função é, segundo o direito penal moderno, de prevenção geral e especial. Ora, face a esse posicionamento sobre o efeito sancionatório, inegável que, para a aplicação da pena, há de se constatar a capacidade de agir e de decidir a respeito da conduta típica. Isso basta. Não é indispensável que o sujeito tenha a capacidade de sofrer os efeitos da sanção, assimilar a mensagem que ela representa, como emenda individual. Se a pena não pudesse ser aplicada a quem não tem consciência para sofrer seu efeito reparador, certamente nunca haveria de ser aplicada aos milhares de reincidentes que povoam as prisões, para quem a sanção nada representa. A pena visa a prevenir o crime, não a castigar ou remendar o defeito psicológico ou moral. E, nessa dimensão, pode ser aplicada tanto a pessoas naturais como a pessoas jurídicas. Estas, ao sofrer a sanção, corrigirão seu defeito de organização.4


Ainda, acerca da possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, transcreve-se, por oportuno, outro importante julgado, também do TRF da 4ª Região, cujo relator foi o Desembargador Élcio Pinheiro de Castro, por ocasião da Apelação Crime nº200172040022250 :

PENAL. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. EXTRAÇÃO DE PRODUTO MINERAL SEM AUTORIZAÇÃO. DEGRADAÇÃO DA FLORA NATIVA. ARTS. 48 E 55 DA LEI Nº 9.605/98. CONDUTAS TÍPICAS. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CABIMENTO. NULIDADES. INOCORRÊNCIA. PROVA. MATERIALIDADE E AUTORIA. SENTENÇA MANTIDA.1. Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial predominante, a Constituição Federal (art. 225, § 3º) bem como a Lei nº 9.605/98 (art.3º) inovaram o ordenamento penal pátrio, tornando possível a responsabilização criminal da pessoa jurídica.2. Nos termos do art. 563 do CPP, nenhum ato será declarado nulo, se dele não resultar prejuízo à defesa (pas de nullité sans grief).3. Na hipótese em tela, restou evidenciada a prática de extrair minerais sem autorização do DNPM, nem licença ambiental da FATMA, impedindo a regeneração da vegetação nativa do local.
4. Apelo desprovido.” 5 

Admitindo-se, pois, a responsabilização penal da pessoa jurídica de direito privado como conseqüência do próprio desenvolvimento natural da sociedade, alguns requisitos devem ser observados. Schecaira sugere os seguintes: “deve a infração ser praticada no interesse da pessoa coletiva, bastando que tenha tido a infração o objetivo de ser útil à finalidade do ser coletivo; o ilícito não pode situar-se fora da esfera de atividade da empresa e deve ser consumado por alguém que se encontre estritamente ligado à pessoa jurídica, tornando-a beneficiária do delito consumado. “ 6


A verdade é que a Carta Magna foi clara ao usar a preposição “e” entre as palavras penais e administrativas.O legislador constituinte redigiu com clareza seu intento de penalizar as pessoas jurídicas e, mais além, de fazê-lo cumulativamente. Não bastasse o até aqui exposto, ainda dentro da Constituição Federal localiza-se outro artigo que faz menção à responsabilização da pessoa jurídica:art. 173, § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. O que vale dizer que coloca a pessoa jurídica na condição de sujeito ativo da relação processual penal, não mais a considerando estranha aos membros que a compõem. Também lhe é atribuída a autoria da conduta que intelectualmente foi pensada por seu representante e materialmente executada por seus agentes, apenas com a condicionante de ter sido o ato praticado no interesse ou benefício da entidade. Pode-se concluir que o legislador constituinte partiu da premissa de que é necessário punir, de alguma maneira, a vantagem que a pessoa jurídica pode, eventualmente, angariar de certas atividades ilícitas do empresário ou de seus administradores.


O nobre advogado ambientalista Antônio Fernando Pinheiro aprofunda a questão, alertando para a aspectos operacionais fundamentais da nova realidade: ”O aferimento do dolo e da culpa da pessoa jurídica é novidade para nossos órgãos de justiça e segurança. Nesse sentido, vale alertar que o processo investigativo irá desenvolver-se no sentido de apurar, objetivamente, os indícios de participação dos órgãos decisórios da empresa, na conduta criminosa imputada. Atas, protocolos, memorandos, circulares, manuais técnicos, planos de emergência e treinamento, poderão tornar-se objeto de investigação criminal, na busca de elementos de culpa da empresa nos delitos penais. Já a aferição da prova testemunhal será dificultada pela ingerência de conflitos de ordem trabalhista e pessoal, os quais, eventualmente, poderão viciar depoimentos de ex-empregados rancorosos, acionistas descontentes, ou mesmo cônjuges de diretores e proprietários em processo de separação... A matéria exigirá, dos órgãos públicos, adoção de medidas de controle para evitar abusos de autoridade e corrupção, e das empresas, procedimentos gerenciais e preventivos mais rigorosos.” 7


Por óbvio que as pessoas jurídicas (aqui entendidas como aquelas expressas nos incisos do art. 44 do Código Civil, -: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações), não poderão sofrer a imposição de pena privativa de liberdade, mas de penalidades adequadas à sua natureza.


As penas aplicáveis à pessoa jurídica de direito privado por crime ambiental estão expressas na Lei n. 9.605/98. Dado relevante é a data da citada lei: 10 anos após a publicação da atual Constituição Federal. Tais penalidades são as de multa, restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade, consoante estabelece o art. 21 podendo ser aplicadas isolada, cumulativamente ou alternativamente.Assim, o art. 18 da Lei n. 9.605/98 estabelece o critério para a aplicação da pena de multa da seguinte forma:. “A multa será calculada segundo os critérios do Código Penal; se revelar-se ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada até 3 (três) vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida.”


O Código Penal estabelece com precisão o conceito e o valor da pena de multa: art. 49 A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. § 1º O valor do dia-multa será fixado pelo juiz não podendo ser inferior a um trigésimo do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes esse salário.


Ainda na Lei n. 9.605/98 encontra-se estabelecida a forma de aplicação das penas nas infrações ambientais:Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:I – a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde pública e para o meio ambiente;II – os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental;III – a situação econômica do infrator, no caso de multa.


As penas restritivas de direitos aplicáveis à pessoa jurídica de direito privado se constituem na “suspensão parcial ou total de atividade”, “interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade” e, por último, na “proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações”, conforme estabelece o art. 22 da Lei n. 9.605/98.


Já a prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica, ante o disposto no art. 23 da Lei n. 9.605/98, consiste no “custeio de programas e de projetos ambientais”, na “manutenção de espaços públicos” e na realização de “contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas”.


Problemas decorrentes da aplicação da Lei n. 9.605/98


Inicialmente a Lei n. 9.605/98 não estabeleceu um rito pelo qual as infrações contra o meio ambiente praticadas pela pessoa jurídica seriam apuradas.Neste sentido, a jurista Ada Pellegrini Grinover, orienta que “o rito processual adequado às pessoas jurídicas, em razão do silêncio da Lei 9.605/98, é o previsto no Código de Processo Penal e na Lei 9.099/95, conforme o caso, não merecendo maiores digressões acerca do tema.” 8 Segundo ela, por analogia , o depoimento seria prestado na forma do art. 12 do Código de Processo Civil, in verbis: Serão representados em juízo, ativa e passivamente: (...)III – as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores;VIII – a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.


Outro ponto controvertido é quanto à possibilidade de suspensão do processo. Para Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, “em razão de uma equiparação à pessoa física da pessoa jurídica, esta detém os mesmos benefícios daquela, ou seja, a suspensão é plenamente possível. Segundo o aludido autor, “indaga-se também se a interdição ou suspensão no âmbito penal seria um bis in idem em caso de suspensão e interdição administrativa, e no caso de concurso e quadrilha, como ficaria a posição da pessoa jurídica.” 11 A imposição de interdição ou suspensão das atividades da pessoa jurídica no âmbito penal, em nada influenciará a sanção administrativa, e vice-versa. Embora sejam a mesma sanção, possuem natureza distinta, ou seja, têm origem distinta, em âmbito diverso.


O concurso de pessoas é plenamente possível ante a equiparação da pessoa física e jurídica, ficando, no mais, a verificação da real ocorrência do concurso de agentes, conforme dispõe o art. 2º da Lei n. 9.605/98: Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixa de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

á no que concerne à quadrilha e bando, a pessoa jurídica não poderá ser sujeito ativo destes crimes. É que a pessoa jurídica pode praticar única e exclusivamente os delitos tipificados na Lei n. 9.605/98, sendo que os crimes de bando e quadrilha não estão contemplados nesta.

Considerações Finais

A partir do Recurso Especial de junho de 2005, o mote de comemoração pela proteção ambiental muda de “Agora é lei”, para “ é lei e tem precedente no Superior Tribunal de Justiça”.

Há de se acreditar que o Ministro Dipp fez história ao reiterar os dispositivos que penalizam a pessoa jurídica de direito privado por crime ambiental, conferindo efetividade ao dispositivo constitucional que determina ser tarefa do poder público estimular o desenvolvimento sustentável. E como dado histórico, é sempre relevante relembrar.


[1] Resp 622724/SC; Recurso Especial 2004/0012318-8. STJ - T5 - Quinta Turma. Relator: Ministro Felix Fischer. 18/11/2004.

3 Mandado de Segurança nº 2002.04.01.013843-0/PR. TRF da 4ª Região. Des. Relator: Fábio Bittencourt da Rosa. 2004.

4 Idem.

5 Apelação Crime nº 200172040022250, TRF4ª Região, Des. Relator: Élcio Pinheiro De Castro. 2001.

6 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: de acordo com a Lei 9.605/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 100/101.

7 PINHEIRO, Antônio Fernando. A responsabilidade das empresas e dos administradores e a nova Lei de Crimes e Infrações Administrativas contra o Meio Ambiente. Disponibilizado em: www.pinheiropedro.com.br/artigos.htm. Acessado em 09/03/2005.

8 GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 48.

11 RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. Da responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 87, nº 758, 1998, p. 412.