Para cada pedaço, um valor...
Por Wilson Tavares Bastos
Considerações Iniciais
Muito se têm discutido no âmbito doutrinário acerca da validade da Lei 11.945/2009, embora nos tribunais haja um silêncio sepulcral, a exceção de algumas turmas recursais.
Por isso, se torna necessária a necessária uma exposição de forma a não deixar dúvidas de que esta lei, que viola os mais comezinhos princípios Constitucionais.
Da edição da Lei 11.945/09 e inconstitucionalidade formal da MP 451/2008
Se há uma lei que é eivada de inconstitucionalidades em sua forma e seu conteúdo é a Lei 11.945/2009. Verificando a sua criação e edição, constata-se que a lei que determina o tabelamento da indenização é maculada de vício de inconstitucionalidade desde a sua gênese.
Senão vejamos:
A Medida Provisória nº 451, de 15 de dezembro de 2008, sob o título de “altera a legislação tributária e dá outras providências” não obedeceu aos requisitos de relevância e urgência, requisitos explícitos no artigo 62 da Constituição da República.
Indaga-se, pois, qual é a relevância e urgência do dispositivo inserto no artigo 21 da mencionada Medida Provisória? Onde há relevância e urgência para a edição de uma medida provisória que teve o único escopo lesar os beneficiários do Seguro DPVAT, haja vista que os Tribunais vinham reconhecendo o direito ao recebimento ao teto do seguro?
Obviamente, tal medida provisória, se é cercada de relevância e urgência, é unicamente para agradar os interesses das seguradoras!
Nem há que se argumentar que relevância e urgência são juízos políticos, pois, neste caso, não houve contraposição entre interesses do Estado x Súdito, mas tão somente interesses das Seguradoras.
O juízo político de relevância e urgência, deve ser adstrito a um interesse legítimo, que evite prejuízos ao erário, às moralidade e ao livre funcionamento das Instituições. Não é este, o caso.
Lado outro, a inserção do tabelamento do Seguro Obrigatório é um verdadeiro Cavalo de Tróia em uma Medida Provisória que tem como escopo principal a legislação tributária federal. Trata-se de prática sub-reptícia que deve ser objurgada pelo Congresso Nacional e, não o fazendo este, pelos Tribunais Superiores. Ademais, tal prática já encontrava vedação pela Lei Complementar 95/1988.
Tanto é uma prática questionável que, recentemente, o Senado deixou de votar a Medida Provisória nº 503/2010, por se tratar de temas totalmente desconexo – o que é o caso da MP 451/2008 – pois havia muitos “cavalos de tróia”
Interessante, destacar o posicionamento do Senador Demóstenes Torres a respeito: "Esta medida provisória é um acinte ao Senado e ao Congresso. Tratam de temas que são tão díspares que não deveriam sequer merecer a leitura na Casa. Não preenche pressupostos constitucionais. Por isso o DEM vai entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo contra esta medida", anunciou Demóstenes.
Desta forma, já surgem vozes nas Instituições aclamando pelo fim de Medidas Provisórias com temas desconexos e “cavalos de tróia”
Ainda, no que pertine à Medida Provisória 451/2008, não se pode afirmar que a sua transformação na Lei 11.945/2009 possa convalidar e transformar em constitucional o que já está maculado desde o princípio.
É o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal a respeito:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 402, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2007, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.656, DE 16 DE ABRIL DE 2008. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS DA IMPREVISIBILIDADE E DA URGÊNCIA (§ 3º DO ART. 167 DA CF), CONCOMITANTEMENTE. 1. A lei não precisa de densidade normativa para se expor ao controle abstrato de constitucionalidade, devido a que se trata de ato de aplicação primária da Constituição. Para esse tipo de controle, exige-se densidade normativa apenas para o ato de natureza infralegal. Precedente: ADI 4.048-MC. 2. Medida provisória que abre crédito extraordinário não se exaure no ato de sua primeira aplicação. Ela somente se exaure ao final do exercício financeiro para o qual foi aberto o crédito extraordinário nela referido. Hipótese em que a abertura do crédito se deu nos últimos quatro meses do exercício, projetando-se, nos limites de seus saldos, para o orçamento do exercício financeiro subseqüente (§ 2º do art. 167 da CF). 3. A conversão em lei da medida provisória que abre crédito extraordinário não prejudica a análise deste Supremo Tribunal Federal quanto aos vícios apontados na ação direta de inconstitucionalidade. 4. A abertura de crédito extraordinário para pagamento de despesas de simples custeio e investimentos triviais, que evidentemente não se caracterizam pela imprevisibilidade e urgência, viola o § 3º do art. 167 da Constituição Federal. Violação que alcança o inciso V do mesmo artigo, na medida em que o ato normativo adversado vem a categorizar como de natureza extraordinária crédito que, em verdade, não passa de especial, ou suplementar. 5. Medida cautelar deferida. (STF RE 346882 ED / RJ,2ª Turma, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA Julgamento: 06/04/2010) (destaque nosso)
Desta forma, a inconstitucionalidade do dispositivo em comento é patente.
Da afronta ao princípio da isonomia e razoabilidade
Com efeito, a definição do conceito de igualdade, dado ser assunto de grande complexidade, assistindo razão a Celso Ribeiro Bastos ao afirmar: "é o princípio da igualdade um dos de mais difícil tratamento jurídico. Isto em razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito e elementos metajurídicos"
No entanto, o princípio da isonomia, segundo o seu conceito aristotélico, adotado pela Constituição da República, é claro ao dispor que deve-se, pois, promover o tratamento desigual dos casos desiguais na medida em que se desigualam, sendo “exigência tradicional do próprio conceito de Justiça”.
Ainda, segundo Alexandre de Moraes, “pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo Direito”.
Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.
In casu, Este tabelamento legal, além de afrontar ao princípio da dignidade da pessoa humana, atenta contra os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da isonomia ao atribuir, de forma genérica, graus de invalidez.
Ora, a lesão de uma mão ou de um pé acarreta diferentes graus de invalidez para diferentes tipos de pessoas. A invalidez de uma mão, por exemplo, não pode ser avaliada da mesma forma para um pianista – que necessita das mãos para exercer sua profissão – e para um jogador de futebol; da mesma forma a invalidez de um pé ou perna não pode ser igualmente avaliada para as duas pessoas de profissões diferentes.
Da mesma forma, não se pode atribuir à perda da função cognitiva de um trabalhador braçal o mesmo valor da de um desembargador, da mesma forma que um desembargador não pode ter o mesmo patamar de indenização pela perca da força de um de seus membros braçais.
Desta forma, lesões devem ser quantificadas não pura e simplesmente com base em valores aritméticos genéricos e abstratos, sem levar em consideração a individualidade do segurado.
Da afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana
Breves considerações
Com o advento do Cristianismo, a idéia dignidade da pessoa humana ganha fundamental relevância, pois, a par de ser característica inerente apenas ao ser humano, este ser, na concepção cristã, foi criado à imagem e semelhança de Deus. Essa idéia veio a ganhar força no transcurso da História, vindo a se tornar referência explícita nos ordenamentos jurídicos civilizados, notadamente no ordenamento jurídico brasileiro, com a sua inserção como fundamento do Estado, na Constituição da República.
A dignidade da pessoa humana, que a Constituição de 1988 inscreve como fundamento do Estado, significa não só um reconhecimento de que o próprio Estado se constrói com base nesse princípio. Segundo Kildare Gonçalves Carvalho, o termo dignidade “designa o respeito que merece qualquer pessoa”
Assim sendo, a dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo, e não para a obtenção de algum resultado.
Não se deve, contudo, deixar e considerar que a dignidade possui também uma dimensão cultural e histórica, e resulta do trabalho de diversas gerações, que lhe determina o conteúdo num contexto concreto da conduta estatal e do comportamento pessoal de cada ser humano.
Considerando a dupla perspectiva ontológica e instrumental da dignidade da pessoa humana, procurando destacar tanto a sua faceta intersubjetiva e, portanto, relacional, quanto à sua dimensão simultaneamente negativa (defensiva) e positiva (prestacional), Ingo Wolfgang Sarlet nos oferece a seguinte conceituação jurídica de pessoa humana:
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, este sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais humanos”
Desta forma, deve prevalecer a noção kantiana de dignidade, as quais os objetos têm valor; as pessoas, dignidade.
Da violação da dignidade da pessoa humana ao promover o parcelamento do corpo humano
Com efeito, o ordenamento jurídico é um sistema destinado a proteger e resguardar não somente os direitos, mas também os valores norteadores da sociedade. Não é, por outra razão, que busca-se, envolver uma gama de preceitos com o escopo de proteger os direitos de personalidade e preservar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Como breve exemplo, o ordenamento jurídico brasileiro não permite que a pessoa coloque à venda um rim, ou o seu sangue, o que se identifica na pertinente elucidação de Silvio de Salvo Venosa que, ao tecer comentários sobre o artigo 13 do Código Civil expõe: “A doação de órgãos post mortem não deve ter qualquer cunho pecuniário porque imoral e contrário aos bons costumes. Nula, por ausência de objeto lícito, será qualquer disposição nesse sentido.”
No entanto, na contramão da proteção da dignidade da pessoa humana, a Lei 11.945/2009 promove um verdadeiro parcelamento do corpo humano, quantificando-o aos pedaços.
Os operadores do direito, notadamente aqueles que litigam na área do Seguro Obrigatório estão familiarizados – e escandalizados – com a forma pela qual a Seguradora Líder conduz um acordo naqueles “mutirões” de Seguro DPVAT. Uma debilidade na clavícula, é um valor, pouco importando a extensão da debilidade acarretou em sua vida profissional. Enfim, trata-se de um leilão, em que peças de carne humana são quantificados.
Ora, refoge a qualquer senso de dignidade a imposição o tabelamento do corpo humano como se cada parte tivesse um valor. A dignidade da pessoa humana não pode ser rebaixada a uma compra de açougue, em que se atribui um valor a uma alcatra ou a um contra-filé.
A dignidade da pessoa humana não pode ser rebaixada a ponto de se permitir que a lei – influenciada pelos lobbies das seguradoras – promove o loteamento do corpo humano, de forma mecânica, ausente de qualquer juízo de humanidade e dignidade, de forma fria, a ponto de comparar-nos a meros bovinos.
Felizmente, setores do ordenamento jurídico não estão alheios e insensíveis a esta questão: as Turmas Recursais cíveis do Estado do Maranhão lançaram o enunciado nº 26, que merece ser transcrita, dado o seu valor:
26 – Não se aplicará a tabela anexa da Lei nº. 11945/2009 porque infringe o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento básico do estado de direito da República Federativa do Brasil. (Aprovado em reunião do dia 31/08/09). (destaque nosso)
No entanto, conforme foi escrito acima, trata-se, ainda de um enunciado isolado, frente à inércia dos Tribunais Superiores em analisar a matéria
Considerações Finais
Desta forma, necessário que os tribunais tomem consciência do que está em jogo: de efetividade ao princípio cardeal da Constituição da República ou ceder aos grupos econômicos de pressão e reduzir o ser humano a um mero pedaço de carne, quantificado de acordo com a parte de seu precioso (?) corpo, enfim, “[...]ser desumano, isto é, contrário à dignidade da pessoa humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto.”