Se em seus quase 25 anos de existência, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) julgou mais de 18 mil mandados de segurança e quase
250 mil habeas corpus, um terceiro “remédio constitucional” é bem mais raro. Os
habeas data, concebidos como defesa do cidadão contra tendências totalitárias do
estado, não chegam a 250. Quase empata com outro meio de garantia pouco
conhecido: o mandado de injunção, que teve pouco mais de 200 casos.
Editorial de
Folha de S.Paulo publicado em 1987 classificava a
proposta como a mais original da Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais
do Congresso Constituinte: “De utilidade evidente, este dispositivo
constitucional surge como reação aos abusos dos organismos de segurança e como
limite ético ao uso da informática nos mais variados setores do país”, dizia o
artigo.
Apesar de questionar a efetividade futura do
instrumento no combate aos abusos de autoridade, o jornal concluía: “Uma
alternativa sofisticada a favor da cidadania, o habeas data terá o sentido
político de declarar o fim do estado inexpugnável. Obrigará maior transparência
da parte do poder público e privado. Diante de todo um conjunto de propostas
desconexas e irreais que vêm encontrando espaço no Congresso Constituinte, esta
merece apoio irrestrito. É um passo adiante na democratização.”
A
questão das investigações sigilosas com cunho político e a abertura de arquivos
que o novo instituto proporcionaria dominavam o debate público da época.
Demanda reprimida
Não por acaso, a primeira
decisão concessiva de habeas data foi proferida dias após a promulgação da nova
Constituição. Em 12 de outubro de 1988, já havia registros de que o advogado Idibal
Pivetta, antigo defensor de presos políticos, havia conseguido acesso aos
arquivos referentes a si mantidos pela Polícia Federal. Ele afirmava aos jornais
que as seis laudas datilografadas fornecidas pelo órgão continham diversos erros
e omissões, que deveriam ser retificados com o processo.
Na mesma
semana, a imprensa contava dezenas de pedidos de habeas data impetrados no
Supremo Tribunal Federal (STF), que acabaram remetidos ao então Tribunal Federal
de Recursos (TFR). A primeira ação do TRF foi movida por um bancário gaúcho
contra o Serviço Nacional de Informações (SNI).
Criação
brasileira
A ação de habeas data é criação brasileira, proposta
em 1985 por José Afonso da Silva aos constituintes. Segundo o
subprocurador-geral da República Pedro Henrique Niess, inspirou-se em previsões
constitucionais da China, Portugal e Espanha. O objetivo dessa ação é evitar que
o estado armazene informações privadas incorretas ou excessivas a respeito do
cidadão.
“Ao direito de ter a informação relativa a determinada pessoa,
corresponde o dever de tê-la certa e assim passá-la, bem como respeitar o
direito ao resguardo, ao segredo”, afirma Niess em
artigo de 1990.
O hoje subprocurador explica
que a ação seria adequada caso o organismo público se negasse a fornecer
informações a respeito da própria pessoa alegando segredo. “O habeas data é uma
ação constitucional que tem por objeto a proteção do direito líquido e certo que
tem o impetrante de conhecer as informações relativas à sua pessoa que constem
de registros ou bancos de dados de entidades públicas ou de caráter público, bem
como o de retificar os dados que lhe servem de conteúdo, sendo gratuito seu
exercício, independentemente de lei infraconstitucional”, completa.
Inutilidade
Apesar da efervescência inicial, a
ação perdeu interesse desde sua criação. No STJ, nos últimos quatro anos, dos 54
pedidos de habeas data, somente um foi concedido, em 2009. Apenas em 2006 o
número de processos desse tipo passou o número de 20, ficando na média anual
de nove casos.
Conforme o doutor em direito Willis Santiago Filho, por
ser um desdobramento do mandado de segurança, alguns apontariam o habeas data
como uma criação inútil da Constituição de 1988, por mais dificultar que
facilitar o acesso aos direitos que já seriam garantidos pelo mandado de
segurança.
O próprio doutrinador, porém, cita Silva para esclarecer que,
na visão do propositor do instituto, o mandado de segurança é mais restrito, por
exigir demonstração de direito líquido e certo. O habeas data, ao contrário,
admitiria processo de conhecimento e produção de provas relativas à incorreção
dos dados. Além disso, não seria destinado apenas contra agentes estatais, mas
também a entidades privadas que mantivessem bancos de dados públicos.
Resistência
A relevância do habeas data no
início do atual ciclo republicano pode ser percebida por ter sido alçado, logo
nos primeiros julgamentos, à condição de digno de ser sumulado. Diz a Súmula 2
do STJ, ainda vigente: “Não cabe o habeas data (CF, art. 5, LXXII, letra "a") se
não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa.”
Diante de ações de habeas data dirigidas diretamente ao Poder
Judiciário, o TFR, e depois o STJ, entenderam não haver interesse de agir do
impetrante se a autoridade administrativa não se opôs, de alguma forma, a
fornecer a informação desejada.
Na época, a polêmica girava em torno de
parecer da hoje extinta Consultoria Geral da República que autorizava os órgãos
de segurança a negar o fornecimento de informações – e mesmo informar sobre a
eventual existência de registros – que pudessem afetar a segurança nacional.
Para o ministro Ilmar Galvão, a exigência de resistência administrativa
seria dispensável. No Habeas Data (HD) 4, seu voto vencido afirmava que o SNI,
ao prestar informações, alegava que vinha fornecendo todos os dados requeridos
pelos cidadãos de forma regular, ressalvadas apenas as situações de segurança
nacional. Como o impetrante requeria acesso a todas as informações e o órgão se
dispunha a fornecer apenas as que não se enquadrassem na Lei de Segurança
Nacional, havia litígio e interesse de agir.
O entendimento não
prevaleceu, porém. Conforme votou na ocasião o ministro Vicente Cernicchiaro,
mantendo a jurisprudência estabelecida pelo TFR, o habeas data é ação
constitucional de jurisdição contenciosa.
“Somente quando houver lesão,
ou probabilidade de lesão a um direito, surgirá o interesse de agir, no sentido
processual do termo, qual seja, a necessidade de ser solicitada a intervenção do
estado através da atividade jurisdicional, a fim de a pretensão do autor ser
acolhida, dada a resistência injustificada da contraparte”, asseverou.
“Não houve a postulação. Não houve a provocação. Em assim sendo, não
surgiu, até agora, nenhuma lesão ou ameaça de lesão ao direito de conhecimento
de registro de dados”, concluiu Cernicchiaro.
Da política à
economia
Passados 20 anos da promulgação da Constituição, o STJ
analisou novo contorno do habeas data: os serviços de restrição ao crédito do
consumidor. No HD 160, a Primeira Seção entendeu que a Lei 9.507/97, ao
contrário da visão do inspirador do instituto em 1985, ao regulamentar a
Constituição exigiu prova preconstituída do erro de informação. Não se poderia,
portanto, no mesmo processo, exigir ser informado da existência de registro e ao
mesmo tempo pretender retificá-lo.
No entanto, os impetrantes nesse caso
conseguiram o direito de conhecer com precisão os dados que o Banco Central (BC)
mantinha no Sistema Central de Risco de Crédito sobre eles. O BC alegava que já
tinha atendido a solicitação, porém a ministra Denise Arruda entendeu de forma
diversa.
“Trata-se de registros cadastrais de difícil compreensão para
cidadãos que não tenham conhecimento do sistema operacional do banco. Dos
referidos documentos não há como concluir se a inclusão dos demandantes no
sistema ocorreu, ou não, em função de algum contrato realizado com o Banco do
Brasil S⁄A ou com a BB Financeira S⁄A”, afirmou. Essas duas instituições estavam
vedadas por ordem judicial de apresentar restrições ao crédito dos impetrantes.
“Ressalte-se que o fornecimento de informações insuficientes ou
incompletas é o mesmo que o seu não fornecimento, legitimando a impetração da
ação de habeas data”, concluiu a relatora.
FGTS
Do mesmo modo, o STJ entendeu que a ação é cabível para atender
a empresa que queira obter os extratos de depósitos de FGTS efetuados junto à
Caixa Econômica Federal (CEF). O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2)
entendia que tais dados não eram pessoais e que os bancos de dados da CEF não
eram públicos, já que usados apenas por si mesma.
A empresa alegava que
os depósitos eram feitos em contas de sua titularidade, apenas vinculados
individualmente aos empregados para garantir o eventual recebimento futuro. O
ministro Castro Meira afirmou que o habeas data não seria cabível no caso de um
extrato comum de conta bancária, que deveria ser tratado como matéria de
consumidor, não interferindo nisso o fato de a empresa detentora do dado ser ou
não pública.
Porém, no caso do FGTS, a Caixa assume função estatal de
gestora do fundo, conforme definido em lei, justificando a concessão do habeas
data (REsp 1.128.739).
O próprio STJ, porém, traz precedente (REsp
929.381) em que se concedeu habeas data contra a Caixa para que fornecesse
extrato bancário comum. O ministro Francisco Falcão reconheceu como correta a
decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) que afirmou a
legitimidade passiva da empresa pública para ação de habeas data, por exercer
atividade do poder público. Submetida ao Supremo via recurso extraordinário, o
processo não chegou a ser julgado naquele tribunal por acordo entre as partes.
Nocivo à Petrobras
De modo similar, o STJ
também teve como acertada a concessão de habeas data para que um empregado da
Petrobras, demitido por ter sido classificado como “nocivo à empresa” em
comunicação interna, tivesse acesso ao documento.
No REsp 1.096.552, a
Segunda Turma entendeu que o registro mantido pela sociedade de economia mista
diz respeito à pessoa do empregado, não configurando mera comunicação de uso
interno.
“Não posso deixar de mencionar o objetivo primário do
particular para impetrar o remédio constitucional: obtenção de documento
probatório para reintegração de funcionário afastado do quadro da Petrobras, em
razão de questões eminentemente políticas, ocorridas na época do regime
militar”, afirmou a ministra Eliana Calmon.
“O impetrante tem evidente
interesse de agir, uma vez que não lhe basta o conhecimento in abstrato
da existência de algum documento ao qual materialmente não tem acesso”,
completou.
Exame mental
Uma servidora do
Itamaraty também obteve direito de acessar exame psiquiátrico a que foi
submetida enquanto lotada na embaixada brasileira em Nairóbi. Ela argumentava
que, apesar de o Ministério das Relações Exteriores ter franqueado a ela o
acesso a sua pasta funcional, os dados só iam até o ano 2000, antes de ter sido
lotada no Quênia.
Ela disse que, embora tivesse realizado tais exames
antes de deixar o Brasil, nos dois anos em que ficou no país africano havia
sofrido acusações infundadas e sido submetida a novos exames.
Para o
Itamaraty, as informações desejadas pela impetrante seriam de uso interno e
exclusivo do órgão, o que afastaria o cabimento do habeas data. O ministro
Nilson Naves divergiu. “Sucede, no entanto, que a garantia constitucional do
habeas data é mais ampla e compreende o acesso a toda e qualquer informação,
inclusive, no caso, àquelas presentes em comunicações oficiais (ofícios,
memorandos, relatórios, pareceres etc.) mantidas entre a embaixada em Nairóbi e
o Brasil, bem como àquelas contidas no respectivo prontuário médico, aí
abrangida a conclusão do referido exame psiquiátrico”, entendeu o relator (HD
149).
Sigilo
Para o STJ, a lei que regulou a
ação constitucional também previu a possibilidade de restrição do acesso a
informações sigilosas. No HD 56, a Terceira Seção decidiu de forma unânime que,
se a lei estabelece um dado como sigiloso e de uso exclusivo da entidade
detentora, não pode ser cedido a terceiros. No caso dos autos, tratava-se de
promoção de oficial da Força Aérea, procedimento regulado por lei de 1994 e que
atribuía caráter sigiloso a esse trabalho.
De modo similar, no HD 98, em
que um desembargador procurava informações relativas a inquérito da “Operação
Anaconda”, que tramitava em sigilo, a Primeira Seção entendeu que a medida
constitucional não alcançava essa pretensão.
Afirmou o ministro Teori
Zavascki: “No caso, pretende o impetrante ter acesso não exatamente a
informações sobre sua pessoa ou, ainda, retificar dados constantes em
repartições públicas, mas sim de obter informações de um inquérito, cuja
finalidade precípua é a de elucidar a prática de uma infração penal e cuja
quebra de sigilo poderá frustrar seu objetivo de descobrir a autoria e
materialidade do delito.”
Herdeiros
Também em
2008 o STJ entendeu que o direito de ação de habeas data se estende aos
herdeiros. No HD 147, a Quinta Turma decidiu que o ministro da Defesa deveria
fornecer informações funcionais sobre o marido para uma viúva de 82 anos, que
aguardava havia mais de 12 meses a transcrição dos documentos.
Nota de concurso
O STJ já rejeitou o uso da ação
constitucional como via de revisão de nota obtida em concurso público. Uma
candidata a fiscal agropecuária federal tentou usar o habeas data para ter
acesso aos critérios de correção da prova discursiva da banca examinadora.
Segundo alegava, a nota era informação pessoal, e a banca se recusava a
fundamentar a rejeição a seus recursos.
Para o ministro João Otávio de
Noronha, a lei não previa nem mesmo implicitamente a possibilidade de tal medida
para o fim pretendido pela candidata. A Primeira Seção também rejeitou a
possibilidade de receber a ação como mandado de segurança, por inexistir no caso
convergência entre o pedido e a causa de pedir do habeas data com eventual
direito líquido e certo passível de proteção por mandado de segurança (HD 127).
Processo administrativo Também não é cabível o
habeas data para se obter cópia de processo administrativo. Para o ministro
Teori Zavascki, se o impetrante não busca apenas garantir o conhecimento de
informações sobre si ou esclarecimentos sobre arquivos ou bancos de dados
governamentais, não é caso para habeas data, mas de eventual mandado de
segurança.
No recurso especial julgado pela Primeira Turma, um piloto
buscava acesso a cópia integral de processo administrativo do Departamento de
Aviação Civil (DAC) para posterior unificação de registros de horas de voo, de
modo a habilitá-lo (REsp 904.447).
Homônima
condenada
Em outro caso, porém, o STJ afastou a necessidade de
habeas data para corrigir processo penal em que uma homônima foi condenada no
lugar da verdadeira ré. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) entendeu
que a homônima não poderia corrigir a condenação por meio de revisão criminal,
que seria passível de ser movida apenas pelo próprio réu.
Conforme o
TJRJ, para o efeito de correção de registro público, no caso o rol de culpados,
seria necessária ação de habeas data. A Sexta Turma do STJ, porém, concedeu
habeas corpus para afastar essa exigência e atender o pedido da condenada (HC
45081).
Fora o nome, os dados de qualificação da ré eram diferentes.
Conforme a decisão do STJ, apesar de haver quase dez homônimas nos órgãos de
identificação civil e fiscal, não foram realizadas diligências para verificar a
verdadeira acusada. A homônima condenada só teria tomado conhecimento da
acusação após o julgamento da apelação, quando foi votar, tendo o processo
corrido todo à revelia.
Lei de acesso
A nova
lei de acesso à informação ainda não foi objeto de decisões do STJ. Porém, a
princípio, não parece influenciar o regime do habeas data. Isso porque a lei
ressalva de forma expressa a proteção das informações pessoais de seus
instrumentos de transparência, enquanto a ação constitucional se destina
exatamente a obtenção de informações pessoais pelo próprio interessado. Resta
aguardar, porém, como a Justiça se manifestará diante de eventuais ações ligando
ambos os institutos.