sábado, 28 de março de 2009

Não cabimento da ação rescisória nos Juizados Especiais Cíveis: o que fazer?






Por Wilson Tavares Bastos e Rosângela Tremel


Considerações iniciais



O Judiciário deve ser célere na busca da prestação jurisdicional. Fato inconteste. Para tanto, o legislador tem lançado mão de diversos institutos a fim de que a morosidade processual deixe de ser um estorvo na vida do jurisdicionado. Com este fito surgiram a antecipação de tutela, o procedimento sumário no processo civil, as mudanças no Código de Processo Civil no que tange ao agravo e aos Embargos à Execução e, finalmente, porém não tão recente, a instituição dos Juizados Especiais Cíveis, regulados pela Lei n.º 9.099/95.

Nesse afã de aprimorar o sistema, entretanto, pode ocorrer que o legislador crie certos dispositivos os quais, sob a bandeira da celeridade e da imutabilidade das decisões judiciais, tornam-se verdadeira facas de dois gumes àquele que eventualmente venha a bater às portas do judiciário e tenha que arcar com uma sentença viciosa, nula e até mesmo inconstitucional.

Por isso, esse presente estudo tem por finalidade demonstrar os males trazidos pelo artigo 59 da Lei n. 9.099/95, em virtude da impossibilidade do ajuizamento da ação rescisória no âmbito desta lei, bem como a inadmissibilidade de o magistrado ficar inerte diante de um decisum eivado dos vícios que compõem o artigo 485 do Código de Processo Civil, usando outros dispositivos legais a fim de contornar essa impossibilidade e, assim, restabelecer a credibilidade das decisões judiciais.

Ação Rescisória

Com previsão no capítulo IV do título IX do livro I – Processo de Conhecimento, mais especificamente nos artigos 485 a 495 do Código de Processo Civil, a ação rescisória é um instituto cuja função precípua é a de expurgar do mundo jurídico a eficácia da coisa julgada. Vale ressaltar que a adoção deste instituto pelo
direito brasileiro mereceu elogios de Pontes de Miranda, para quem o sistema de desconstituição da coisa julgada "é um dos melhores do mundo"

A a cão rescisória é um meio de provocar a impugnação e o conseqüente reexame de uma decisão judicial; possui, portanto, nas lições de Nelson Nery Junior natureza constitutiva negativa quanto ao juízo rescindendo, dando ensejo à instauração de outra relação processual distinta daquela em que foi proferida a decisão rescindenda.

Muito embora o texto do artigo 485 do Código de Processo Civil dê a entender que a rescisão recai sobre a sentença de mérito transitada em julgado, o que se busca realmente não é apenas rescindir a sentença, e sim a desconstituição da coisa julgada. Isso porque, após a procedência o julgamento da ação rescisória, não mais terá o efeito de ação rescisória. De forma mais clara, expõe, nesse sentido, o professor Bolívar Viégas Peixoto, prelecionando que “depende a ação rescisória de ter havido o trânsito em julgado da sentença ou do acórdão que se pretende rescindir. Assim, o termo mais apropriado não é o de rescindir a sentença, mas rescindir a coisa julgada e não a sentença em si”

O artigo 485 do Código de Processo Civil elenca a possibilidade da sentença de mérito ser rescindida nas hipóteses enumeradas nos incisos desse dispositivo legal. No entanto, o caput do referido artigo dispõe os requisitos necessários para a cogitação inicial da rescisão da sentença, tendo em vista que apenas após o seu cumprimento é que serão analisadas as hipóteses enumeradas em seus incisos, arrolados em numerus clausus. Desta forma, tem-se como condições iniciais: que a sentença seja de mérito e que tenha transitado em julgado. Quanto à segunda exigência não há maiores delongas, haja vista que a sentença ainda não transitada em julgado ainda pode ser impugnada pelos recursos cabíveis. Já quanto à necessidade de que a sentença seja de mérito, entende-se que apenas aquelas decisões que estejam sob a lápide da res judicata materialis é que podem ser atacadas via ação rescisória. Assim, entende-se que as decisões que extinguem o processo sem julgamento do mérito não podem ser objetos da aludida ação. Tal impossibilidade, todavia, não é absoluta, já que, conforme foi citado por Elpídio Donizetti Nunes, houve precedente jurisprudencial admitindo a ação rescisória quando a sentença, embora não seja de mérito, possa impedir a discussão da matéria de fundo, como é o caso da sentença que põe termo ao feito considerando o autor parte ilegítima .

A elucidação das condições primárias para o ajuizamento da ação rescisória até aqui tecida é suficiente para obtenção de parâmetros acerca das discussões a seguir expostas.

A Lei n. 9.099/95 e a vedação da rescisória pelo seu artigo 59


Diante da necessidade de uma prestação jurisdicional rápida e eficaz, e, por força do artigo 98, I da Constituição da República, foi instituída a Lei n. 9.099/95 – que trata dos Juizados Especiais, tema anteriormente disciplinado pela Lei n.7244/84. Tal lei definiu as normas para julgamento e execução de causas cíveis e criminais de menor complexidade.

Como corolário dessa agilidade, o artigo 2º deste diploma legal dispõe acerca dos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, bem como realça a busca incessante pela conciliação ou a transação. Já o artigo 3º define a competência do Juizado Especial Cível para o julgamento das causas cíveis de menor complexidade. Também não admite qualquer forma de intervenção de terceiro ou assistência. Tudo pela celeridade.

O que causa espanto, todavia, é o teor do artigo 59 da Lei n. 9.099/95, que prescreve a admissibilidade do ajuizamento da ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por aquela Lei. Qual foi a intenção do legislador ao elaborar tal dispositivo legal? Simplesmente a imutabilidade das sentenças proferidas no âmbito daquela lei? Entende-se que não. Não há qualquer razão para que, respeitados os limites de instâncias, as decisões proferidas pelos juízes singulares ou pelas turmas recursais tenham predominância sobre aquelas proferidas pelos juízes comuns ou tribunais. Afinal, todas as sentenças devem, a princípio, obedecer os requisitos do artigo 98, III da Lei Maior, não havendo o porquê da distinção.

Diante da exclusão dessa alternativa, não resta outra conclusão senão a de que tal vedação apenas foi criada com o escopo de proteger a celeridade processual; e assim fazendo, o fez mal. Por quê? Porque esse afã em estabelecer a celeridade da prestação da tutela jurisdicional, no caso do artigo 59 da Lei n. 9099/95 pode vir a comprometer a credibilidade desta própria prestação jurisdicional, dando margem a decisões sem qualquer fundamentação legal, ou mesmo contra dispositivos de ordem pública. Ademais, essa celeridade buscada jamais seria alcançada, tendo em vista que a parte sucumbente dificilmente se conformaria com uma decisão eivada de vícios e transitada em julgado. O vencido usaria de todos os meios para protelar a sua execução; opondo embargos à execução; embargos de declaração improcedentes, recursos; ou mesmo fraudando a execução, ainda que fosse apenado como litigante de má-fé. Trata-se de um sofisma, portanto.

Pelas circunstâncias que cercam a necessidade de um provimento judicial rápido e a segurança jurídica, pergunta-se: é razoável por em risco a segurança conferida a ação rescisória, mesmo que pelo exíguo prazo de 2 anos em detrimento da rapidez? Há razoabilidade ao prevalecer uma sentença rápida e eivada pelos vícios arrolados no artigo 485 do Código de Processo Civil? Certamente que não é o posicionamento do mundo jurídico preferir uma sentença rápida a uma sentença viciosa, que pode, inclusive, infringir matérias de ordem pública. Ora, se nem mesmo o instituto constitucional da coisa julgada é entendido de forma absoluta , pela constitucionalidade do artigo 485 e seguintes do CPC, por que razão deveria ser entendido de forma diferenciada pela Lei n.9.099/95?

Para um procedimento que já se encontra limitado pela impossibilidade da interposição de Recurso Especial, por força da súmula 203 do Superior Tribunal de Justiça , que reconhece apenas a interposição deste Recurso a partir das decisões emanadas pelos Tribunais, conforme expõe o artigo 105, III da Constituição da República,a revogação do artigo 59 da Lei n. 9.099/95 se faz necessária a fim de que a credibilidade das decisões judiciais não seja abalada. Afinal, diante da morosidade ainda reinante, tudo o que o judiciário não quer é ver suas decisões serem alvo de desconfiança, já que, diante da impossibilidade da interposição de Recurso Especial contra decisões das turmas recursais, há o receio (nunca se sabe) da difusão de decisões expressamente contrárias à lei federal por alguns juizados e turmas recursais.

Desta forma, estes articulistas fazem sua a opinião de Nelson Nery Junior ao defender a revogação do artigo 59 da Lei 9099/95,.


O artigo 59 da Lei n. 9099/95 e o princípio a eqüidade


Mesmo diante da plena vigência do artigo 59 da Lei n.9099/95, a única forma apta para se opor a sentença transitada em julgado, alegada nos incisos do artigo 485 do CPC seria em sede de embargos à execução, cujos fundamentos apenas poderiam versar acerca das hipóteses elencadas no artigo 52, IX da Lei 9.099/95 e as do artigo 741 do Código de Processo civil, dentre as quais não se encontra qualquer correlação com as hipóteses enumeradas no artigo 485 do CPC.

Hipoteticamente pergunta-se : Como se portaria o magistrado ao se deparar com uma sentença que foi proferida pelo juiz anterior, que se descobre parente da parte? Ou, ainda no campo das hipóteses, como ele procederia diante de uma decisão judicial transitada em julgado que ofendesse a coisa julgada? Julgaria ele improcedentes os embargos por ausência de previsão legal? De certo que esta não seria a opção mais justa.

Desta maneira, o julgador poderia utilizar do dispositivo legal inserido no artigo 6º da Lei 9.099/95 , dispositivo este que o permite adotar, em cada caso a decisão mais equânime. Este mecanismo é de grande importância, devendo ser entendido de forma ampla no caso vertente. Assim, mostra acorde a lição de Nelson Nery Junior, para quem “o juiz não está adstrito ao critério da estrita legalidade. Não por eqüidade pura, mas temperada com os “fins sociais da lei”, conforme dita o dispositivo ora comentado. Na verdade, o critério legal de julgamento das lides deduzidas perante os juizados especiais é, também, especial, pois foge da rígida dicotomia clássica entre jurisdição de direito e jurisdição por eqüidade” Isto posto, tem-se margem para um critério subjetivo à avaliação do direito ora viciado, diante da falta de previsão legal para a sua devida aplicação, como é o caso do acolhimento das razões fundadas nos incisos do artigo 485 do Código de Processo civil em sede de Embargos à Execução.

Certamente que o juiz não poderá ficar inerte diante do inconformismo da parte em virtude de uma decisão que venha ferir as matérias de ordem pública. O seu provimento jurisdicional não poderá ficar de engessado diante de uma norma que, definitivamente, não possui fim social, como é o caso do artigo 59 da Lei 9.099/95. Poderá, contudo, diante o permissivo do artigo 6º da mencionada lei, atender às exigências do bem comum, que se constituem antes de tudo, no primado da credibilidade das decisões judiciais.

Alerta-se, todavia, que o uso indiscriminado desse dispositivo como uma pseudo ação rescisória (já que apenas poderia ser argüida, a princípio em sede de embargos à execução) poderia se tornar a já referida “ faca de dois gumes”, posto que a sua aplicação indevida (como é o caso de interpretações contra legem, por exemplo) poderia mitigar de vez a força da coisa julgada material, novamente levando em consideração a impossibilidade da interposição de Recurso Especial contra as decisões das turmas recursais.
Ante o exposto, advoga-se que melhor seria, para a devida manutenção da segurança jurídica, que o legislador revogasse o artigo 59 da Lei n. 9.099/95 para que o artigo 485 e seguintes do CPC tivessem aplicabilidade nos Juizados Especiais.


Considerações Finais


Como foi visto, a coisa julgada gerada por uma decisão judicial de mérito transitada em julgado poderá ser rescindida nas hipóteses elencadas nos incisos do artigo 485, do CPC. Tal instituto foi criado a fim de manter a credibilidade das decisões judiciais, sendo tal dispositivo legal, contudo, inaplicável no âmbito da Lei n. 9.099/95 ex vi de seu artigo 59.

A norma do artigo 59 da Lei n. 9.099/95, criada com o escopo de contribuir para o instituto da celeridade, não alcançou tal objetivo, tornando-se, destarte, uma norma sem fim social, o que a faz destoar do diploma legal específico, a ponto de permitir que se sugira sua retirada do ordenamento jurídico,pois, além de sua inutilidade completa, pode vir a se tornar um verdadeiro celeiro de decisões contrárias à lei, à ordem pública e, principalmente, à Constituição.

Que se saliente, entretanto, que a vigência de tal preceito legal não constitui óbice para o julgador apreçar, reconhecer e afastar uma decisão inconstitucional ou mesmo nula ou anulável na oportunidade da oposição de Embargos, aplicando a eqüidade prevista no artigo 6º da Lei n. 9099/95 para adicionar os incisos do artigo 485 no rol das hipóteses argüíveis sob forma de Embargos. Em síntese, ao presenciar uma sentença que tenha sido proferida por juiz impedido, que venha a ofender a coisa julgada ou mesmo quando se verificar que se funda em qualquer das possibilidades arroladas nos incisos do artigo 485 do CPC, o magistrado poderá aplicá-las, mesmo na ausência previsão legal para tanto.

O princípio da eqüidade deve, não obstante, ser usado com parcimônia para que os seus efeitos não surtam efeitos contrários aos pretendidos, vindo a subverter o real sentido da norma descrita no artigo 6º da Lei 9.099/95.


Notas

MIRANDA, Pontes de. Tratado da Ação Rescisória. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1976, § 56, p. 631.

NERY JUNIOR, Nelson – Código de Processo Civil Comentado e Demais Legislação Extravagante. 7ª ed. RT. São Paulo, 2003. pág. 829.
PEIXOTO. Bolívar Viégas. Iniciação ao Processo Individual do trabalho. 4ª Ed. Forense. Rio de Janeiro, 2004. pág. 478
Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar literal disposição de lei;
VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja
VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;
§ 1º. Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.
§ 2º. É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

JTAERGS 70/190
NUNES,Elpídio Donizetti. Curso Didático de Direito Processual Civil. 4ª Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2003. pág. 346/347
A tendência à relativação da coisa julgada tem, efetivamente, ganho ilustres adeptos, tais como CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO. Relativizar a coisa julgada material. In: Ajuris, n. 83/33, e Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 19/5-31, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JULIANA CORDEIRO DE FARIA. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: Revista do Ministério Público, n. 47, p. 115-147, e Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 19/32-52. JOSÉ AUGUSTO DELGADO. Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas. In RePro, n. 103/9; SÁLVIO FIGUEIREDO TEIXEIRA in REsp 226436/PR, J. 28.06.2001, dentre outros.
Súmula 203 Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais.
NERY JUNIOR, Nelson Ob. Cit. Pág. 1548
Art. 6 Lei 9099/95 O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.
NERY JUNIOR, Nelson Ob. Cit. Pág. 1526

3 comentários:

  1. Excelente trabalho, embora não seja o entendimento jurisprudencial acerca do caso concreto.

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  2. Infelizmente eu e minha família fomos vitima desse artigo ditatorial. Não me concederam o dreito universal do contraditório e da ampla defesa e, tão pouco após o transito e julgado, o Estado ter assumido esse grande erro que fere a dignidade humana num parecer da PGE. Fui exonerado e taxado de ilegal. Entendam lendo esse processo: TJSP 1004920-84.2013.8.26.0053. Agora vejam as Jurisprudências e tirem suas conclusões: (PROCESSO Nº TST-RR-2810-75.2011.5.02.0035; PROCESSO Nº TST-RR-2787-72.2011.5.02.0054; PROCESSO Nº TST-AIRR-3307-94.2013.5.02.0043) / (Supremo Tribunal Federal nos AgRgRE n.°633.298, rel. Min. Ricardo Lewandowski; RE n.° 351.905 rel. Min. Eilen Gracie; RE n.°553.670, rel. Min. Eilen Gracie; RE n° 725.798, rel. Min. Dias Toffoli; RExt n. 799.251, rel. Min. Gilmar Mendes; ARE 793.455 rel. Min. Cármen Lúcia; RE 721.077 rel. Min. Gilmar Mendes; ARE 789.710 rel. Min. Roberto Barroso e ARE 906.565 rel. Edson Fachin).

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