domingo, 17 de outubro de 2010

Comunidade européia, constituição e soberania: abdicar poderá ser possível?


Por Rosangela Tremel

A União Européia representa uma forma especial de organização da conduta conjugada e harmônica dos povos de diferentes Estados europeus, visando a atingir resultado de interesse comum. Não é uma federação como os Estados Unidos da América, nem é uma mera organização de cooperação entre governos como as Nações Unidas. Os países que pertencem à União Européia, chamados de Estados Membros, continuam a ser nações soberanas e independentes, contudo congregaram as suas soberanias em algumas áreas para ganhar força e influência que não poderiam obter isoladamente.Isso significa que os Estados Membros delegam alguns dos seus poderes, de modo que os assuntos de interesse comum possam ser decididos democraticamente.
Como em qualquer organização, na União Européia há um problema de divisão de poder, com a agravante de sua natureza supranacional. No âmbito do direito interno, a temática do poder se desenvolve no plano intersubjetivo. Vale dizer que os países membros delegaram parte da sua soberania a um órgão supranacional, que representa os interesses nacionais e comunitários, agindo com independência, soberania e autoridade. Esse instituto da supranacionalidade confunde-se com o próprio direito comunitário, sendo que os princípios que regem a supranacionalidade são o da primazia, o do efeito direto, o da aplicação direta e o da uniformidade na aplicação e interpretação do direito comunitário.Segundo o princípio da primazia, o direito comunitário prevalece sobre o direito nacional. Por sua vez, o do efeito direto, diz que as normas não sujeitam apenas os Estados, mas também os povos. E o princípio da aplicação direta, implica no automatismo da entrada em vigor de um ato de direito derivado, sem a necessidade de internalização pela ordem jurídica nacional, sendo que o princípio da uniformidade da aplicação e interpretação do direito comunitário, este busca a harmonização entre o dispositivos legais internos e o comunitários.

Os instrumentos político-jurídicos existentes na União Européia servem ao controle da concentração de poder , de modo a evitar que um dos Estados prevaleça sobre os outros, o que é matéria sempre presente em qualquer relacionamento entre Estados soberanos,sendo objeto de vigília e preocupação constantes em qualquer formação de bloco econômico ou alargamento de abrangências comunitárias.

No que tange ao poder supranacional da União Européia, deve-se ter em mente que esta não consiste apenas em mera manifestação dos Estados-membros, pois existem órgãos comunitários, os quais são titulares de competências próprias, oponíveis àquelas pertencentes aos Estados.
A sistemática de separação de poderes na União Européia necessita e busca constantemente o equilíbrio de interesses nacionais entre si e em face de um ente central, havendo decisões que são tomadas em conjunto pelos Estados-membros e outras que podem ser efetivadas isoladamente, bem como as que são adotadas sem manifestação direta dos Estados ou pela vontade da maioria deles.

A União Européia não possui competências originárias próprias, mas as recebe dos Estados que a constituem, sujeitando-se ao princípio da especialidade, o que implica que seus poderes são limitados e específicos, e que toda atuação comunitária deverá indicar sua base legal, demonstrando o dispositivo normativo que lhe dá fundamento.
Para manter o indispensável equilíbrio entre os órgãos nacionais e os supranacionais são utilizadas fórmulas procedimentais e critérios variados de discriminação de competências, sempre com vistas à construção de uma Europa unificada. Neste sentido, uma tentativa que teve grande repercussão, visto que teria amplo espectro macroeconômico, foi o anteprojeto da Constituição da União Européia no ano de 2000 que, se tivesse sido aprovado, representaria um importante instrumento em prol da integração supranacional, pois, a princípio, seria o primeiro passo para os países membros europeus viessem a se unir sob forma de Federação.

O projeto gerou muita discussão até ser arquivado. Quem advogava contra, argumentava que a Constituição escrita seria um empecilho a mais no caminho da própria União Européia, dificultando a entrada de novos membros e a acomodação dos atuais. Sustentavam que admitir tal Constituição seria criar um super Estado europeu pela agregação dos atuais Estados nacionais, os quais ainda não estariam preparados para perder mais uma parte sua soberania.

Por outro lado, os que defendiam a adoção da Constituição, pregavam que a Constituição era o melhor modo de dar à União Européia um acabamento necessário, mais realista ou mais legítimo, sem que isso implicasse na perda de mais suma parcela significativa, para não dizer de toda soberania dos Estados-membros, pois ainda que lhes restasse autonomia ampliada nos termos norte americanos, um dos elementos centrais da teoria do estado se ausentaria do contexto europeu de forma irreversível.

De qualquer modo, mesmo sem terem aprovado uma Carta Maior única, na Europa atualmente ocorre um processo de constitucionalização, onde a perda da soberania é a tormenta que assombra todos os seus integrantes.

Nos Estados-membros, internamente, a constitucionalização significará abrigar certa matéria na Constituição, aprofundando a integração de uma sociedade política que, depois de nascer na ordem internacional como “mercado comum” e evoluir na ordem supranacional como “comunidade”, pretende, um dia , consolidar-se como “união” por uma ordem jurídica constitucional. Para tanto, o caminho natural aponta como estatuto jurídico para a consolidação deste modelo, uma Constituição, medida que legaria ao passado o estágio atual de tratados e acordos.

A cada escolha, uma renúncia, diz a sabedoria popular. Resta saber se os Estados Membros estarão, um dia, dispostos a abdicar de sua soberania. Parece não haver dúvidas de que uma decisão de tal porte terá que ser pautada por uma relação custo/benefício muito criteriosa, derivada de acurada análise. E isto, só cenários futuros poderão demonstrar.

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